A Revolução a 24 imagens por segundo

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No âmbito das comemorações dos 50 anos da Revolução do 25 de Abril de 1974, considerada “a última revolução de esquerda da Europa”, que libertou Portugal de uma ditadura de 48 anos, o Cinema Sétima Arte organiza este especial dedicado ao tema Revolução.

O Cinema foi muitas vezes um observador, mas foi também uma ferramenta de propaganda (como fizeram Serguei Eisenstein na Rússia e Leni Riefenstahl na Alemanha, por exemplo) ou um interveniente no próprio acontecimento que registrava a 24 imagens por segundo. Os filmes podem ser revolucionários de várias maneiras, pelo conteúdo, pelo modo e no tempo em que foram feitos e por quem os realizou.

A Revolução dos Cravos foi e continua a ser matéria de interesse do cinema português, mas também do cinema internacional. Os anos que se seguiram ao 25 de Abril de 1974 “trouxeram ao cinema português uma enorme diversidade de propostas”, uma “vaga revolucionária, em geral, de filmes documentais, por vezes próximos da reportagem”, segundo afirma Catarina Alves Costa no seu livro “Cinema e Povo – Representações da Cultura Popular no Cinema Português” (2021).

São exemplos disso filmes como “As Armas e o Povo” (1975), “Torre Bela” (1975), “Cenas da Luta de Classes em Portugal” (1976), “Revolução” (1976) ou “Bom Povo Português” (1981).

Estas obras integram assim um conjunto de filmes militantes que os anos da revolução trouxeram ao cinema português, aquilo a que a autora chamou de “olhar revolucionário, fruto do movimento de urgência e de vontade de registo que se criou logo a seguir ao 25 de abril de 1974, e que, não durando mais do que dois anos, subvertia as formas de produção do cinema português.”

Seguiram-se nas décadas seguintes obras de ficção e de documentário como “Cinco Dias, Cinco Noites” (1996), “Outro País” (1999), “Capitães de Abril” (2000), “48” (2010), “Linha Vermelha” (2012), “Cartas de Guerra” (2016), “Salgueiro Maia – O Implicado” (2022) e “Revolução (Sem) Sangue” (2024).

A lista que se segue, de cinema insubmisso, evoca vários tipos de revoluções: de momentos históricos de resistência de oprimidos contra opressores, de transformação social, política ou cultural, de luta e consciência de classes, de anti-imperialismo ou de libertação de um povo.

Com o 25 de Abril, a censura desaparece ao fim de 48 anos de regime fascista e a liberdade sonhada contagia todas as pessoas. É a partir deste momento histórico que Portugal inicia a construção de um Estado democrático que garante a liberdade de expressão e pensamento. Permitindo que hoje, 50 anos depois, possamos ver e escrever sobre estes filmes que sugerimos.

“Zero em Comportamento” (1933), de Jean Vigo

Cátia Santos – “Zero em Comportamento” (1933), de Jean Vigo

Um hino à liberdade de espírito, à negação do que é antigo e bafiento, o estilhaçar ofensivo de um passado opressivo – tudo isto embrulhado na pureza em estado natural das crianças, que não encaram os obstáculos como impossíveis de ultrapassar, mas procuram todos os truques existentes para contorná-los. Faz falta que se olhe o mudo assim.

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Cláudio Azevedo – “Eu, Daniel Blake” (2016) de Ken Loach

Uma coisa clara sobre o capitalismo é que ele conseguiu quebrar quase todas as resistências que tentaram criar ofensivas mais ou menos organizadas contra si, fossem estas de origem partidária ou movimentos de luta espontâneos. A sua capacidade de plasticidade e de readaptação é tão eficaz que hoje a nossa capacidade de resistência parece estar confinada à esfera individual a que essa política nos reduziu. Há hoje um cansaço que resultou de todas as investidas coletivas históricas, uma resignação a essa inércia quase perfeita que o capitalismo conseguiu criar para poder sentar-se confortavelmente no seu trono. Por isso, é que as formas de resistência mais visíveis hoje são aquelas onde os indivíduos lutam, no seu dia-a-dia, para não sucumbirem totalmente a uma forma de poder que os submete, em todas as esferas da sua vida. Estas formas de resistência são como um pequeno fósforo que se acende no meio da escuridão; é esta pequena luz de resistência que Ken Loach tenta captar no seu filme “Eu, Daniel Blake”.

O filme não retrata nenhum movimento político a uma escala universal, nenhuma revolução; mostra antes como a vida de um só indivíduo consegue traduzir uma realidade política universal. “Eu, Daniel Blake” é, sobretudo, um filme que nos fala sobre formas de resistir a um processo de desumanização levado a cabo pela ordem económica e ideologia capitalistas. Neste filme vemos como só os laços afectivos e a generosidade podem propagar o antídoto para combater um veneno que se entranha e se esconde nas nossas vísceras para corroer a nossa capacidade de amar. Existem famílias que nascem espontaneamente pela pobreza e pela vida precária a que são reduzidas; e que lutam, antes de tudo, para reproduzir e garantir que ainda persista aquilo que lentamente esta realidade vai matando em nós. 

Perdoe-me o leitor pelo sentimentalismo das minhas palavras. Pode não parecer político, mas é. 

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Lígia Maciel Ferraz – “Jeanne Dielman” (1975), de Chantal Akerman

“Jeanne Dielman” (1975), de Chantal Akerman, revoluciona o cinema quando centraliza o tempo do trabalho doméstico. A dona de casa, interpretada por Delphine Seyrig, é trabalhadora doméstica e sexual. Conhecemos a personagem através da repetição dos seus gestos: o tempo que Jeanne Dielman leva para descascar uma batata não é ocultado por uma elipse, como o cinema ainda costuma fazer. A duração do plano respeita o tempo levado para se descascar batatas, preparar a carne, arrumar a cama, tomar banho e lavar a banheira, etc. Essa escolha estética torna visível o trabalho invisível de quem é a principal responsável pelas atividades domésticas. A gestão da casa e dos afetos é a reprodução social do trabalho, que não é considerado como produtivo, pois não agrega valor ao mercado. No entanto, o trabalho doméstico, de caráter cíclico e infinito, é fundamental para que os próprios trabalhadores existam, pois garante as roupas limpas, a casa habitável, a comida feita, e garante sobretudo a continuação da vida, com o nascimento de novos bebés que futuramente trabalharão para gerar mais força de trabalho. Para além de valorizar visualmente o trabalho doméstico, o filme ainda liberta a personagem deste aprisionamento. Quando algo desalinha a rotina minuciosa da dona de casa, todas as atividades planeadas sofrem um deslocamento temporal. O que pode acontecer a uma mulher que tem tempo faltando e, depois, do que ela é capaz quando tem tempo de sobra?

“A Onda” (2008) de Dennis Gansel

Mariana Bento Lopes – “A Onda” (2008) de Dennis Gansel

Conhecem a expressão, ‘uma brincadeira que correu mal’? Pois bem, foi exatamente isso que aconteceu na sala de aula de Ragner, um professor alemão, anarquista assumido, a quem foi pedido que ministrasse um workshop sobre autocracias. ‘Totalitarismo nunca mais’, afirmavam os alunos, descrentes que um regime ditatorial poderia assombrar novamente uma Alemanha moderna. Ragner decidiu então mergulhar a turma numa experiência social e demonstrar, na prática, como são ténues as fronteiras entre o populismo e o fanatismo. No início, a trama parece ter um impacto positivo na vida dos estudantes. Tornam-se mais unidos, aplicados, entreajudam-se e defendem-se. No entanto, à medida que a história se desenrola, a retórica vai-se tornando cada vez mais manipuladora, perturbadora e inquietante. Dentro e fora da tela, somos confrontados com dilemas morais e éticos sobre limites de autoridade, necessidades de pertença e propaganda. As boas intenções deste professor rapidamente fogem do seu controlo e o desfecho é uma lição de história que já todos julgávamos ter aprendido. O movimento torna-se maior do que o próprio líder, como uma onda da qual só temos noção do tamanho quando já não lhe podemos escapar. É um filme intemporal que nos recorda que a liberdade não é um bem adquirido, e que mais do que nunca precisamos estar atentos e questionar, tendo o passado em mente para que não se repitam os mesmos erros.

“Die Welle”, título original, é uma adaptação do livro homónimo do norte-americano Todd Strasser (1981) que por sua vez foi inspirado numa história real.

"A Sala de Professores" (2023), de Ilker Çatak
“A Sala de Professores” (2023), de Ilker Çatak

Maria Inês Gomes – “A Sala de Professores” (2023) de Ilker Çatak 

A Sala de Professores da Escola funciona como microcosmos da sociedade e, sem conseguir ser transformadora da realidade social, ela padece, nos nossos dias, de ser reflexo da crise da (pós-) Verdade. 

Fiel ao princípio categórico de pagar pelo  café disponibilizado na sala dos professores, a professora deste filme (Leonie Benesch) luta por um ensino democrático, justo e equitativo e, como tal, persiste em averiguar antes de julgar, mas não evita cair na opressão da “tolerância zero”. Perto de um pragmatismo germânico que procura sempre, a todo o custo, livrar-se do incómodo daquele que incumpre a lei, fica-se longe de apurar o essencial e de conseguir escutar as crianças nas verdades que têm para contar. Só sobram manifestações explosivas de raiva, e de sensacionalismo dissimulado de jornalismo, sobra um fraco exercício da democracia dentro e fora da sala de aula. À professora restam-lhe ataques de pânico e um olho ferido: as feridas que espelham a falta de liberdade, e a asfixia da desadequação do categórico. O filme é uma lição de alerta quanto ao lugar ético da verdade como bússola moral. 

Vale a pena repensar a instituição escolar? Vale a pena a luta e a esperança? Valem sempre a pena, sem elas a possibilidade de transformação morre, e não se pode matar a liberdade. 

“Eles Vivem” (1988) de John Carpenter

Nuno Oliveira – “Eles Vivem” (1988) de John Carpenter

A revolução ainda não terminou. Está inacabada, incompleta. Tal como no clássico de terror de Carpenter, e que se reforce a palavra “terror”, aqueles que nos ousam explorar ainda vivem entre nós. Para a revolução se completar verdadeiramente, há que rejeitar e acabar de vez com o neoliberalismo, com as hordas de mensagens subliminares, inerentes à ideologia capitalista, que nos incitam a consumir para além do que necessitamos. O consumo e o grande capital são duas faces do mesmo deus terrível que se vislumbram por detrás do marketing do nosso quotidiano. Façamos como Nada, o herói de “Eles Vivem”, e ponhamos, sem medo, os óculos para desmascarar a ideologia vigente.

“O Espírito de 45” (2013) de Ken Loach

Tiago Resende – “O Espírito de 45” (2013) de Ken Loach

A minha primeira escolha foi “Linha Vermelha” (2011), de José Filipe Costa, por ser um dos mais fascinantes documentários do cinema português dos últimos 20 anos, mas também por ser um dois em um, na medida em que é um filme sobre um outro filme, um clássico do período do PREC, “Torre Bela” (1975), do alemão Thomas Harlan. No entanto, os tempos que vivemos urgem outras discussões e o filme de Ken Loach, estreado dois anos depois de “Linha Vermelha”, é a urgência do presente para que se garanta um futuro humanista. O filme de Ken Loach é precisamente essa linha vermelha que distingue uma sociedade individualista e selvagem de uma sociedade cooperativista e humanista, com esperança. 

O espírito de 45 foi a visão de uma geração que enfrentou muitos sacrifícios durante a 2.ª Guerra Mundial, que viu na construção de um Estado forte a esperança de uma vida melhor e digna, com um estado social capaz de dar resposta a áreas tão fundamentais como a saúde, habitação, educação e emprego e, ao mesmo tempo, garantir o desenvolvimento e o progresso do país. Através da recolha de vários testemunhos de pessoas comuns, trabalhadoras, sobreviventes dessa geração de 45, intercalados com imagens de arquivo da época, desde 1945 até ao século XXI, o realizador inglês faz um extraordinário filme sobre um momento histórico em que foi possível em coletivo construir um estado social, em que a ideia central era a do bem público.

Ken Loach dá ênfase à criação do Serviço Nacional de Saúde como um dos pilares indispensáveis para um estado social forte que permitiu que esse espírito do bem comum, da partilha e do espírito de comunidade se mantivessem vivos. Até que, no período de Margaret Thatcher, passou-se de um Estado que tinha um papel reformista e do interesse público para um Estado que incentivava e facilitava o mercado livre, a privatização e a total destruição do estado social. A mensagem de Loach neste filme nostálgico é a de que sem um estado social não há esperança. É por isso que este é um filme essencial e pertinente, sobretudo no momento atual em que vivemos, com a direita tradicional e conservadora e uma onda da extrema-direita a ganhar terreno um pouco por todo o mundo, sobretudo na Europa, ameaçando e destruindo os serviços públicos e, por consequência, o espírito de coletivo.

"As Crónicas de Nárnia: O Príncipe Caspian" (2008), de Andrew Adamson

Vanderlei Tenório – “As Crónicas de Nárnia: O Príncipe Caspian” (2008), de Andrew Adamson

À primeira vista, pode parecer uma escolha peculiar; no entanto, o filme “As Crónicas de Nárnia: Príncipe Caspian”, realizado pelo neozelandês Andrew Adamson, revela-se como uma narrativa profundamente enraizada em temas como revolução, liberdade, reconstrução e resistência contra a opressão e os esforços para erradicar a identidade de um povo.

Muitos podem não perceber ou até mesmo rejeitar esta interpretação, mas o filme funciona como uma alegoria da colonização europeia que marcou vários territórios ao longo da história, evidenciando a dominação e a subjugação de populações originárias por povos invasores.

Assim como aconteceu com a colonização europeia em África, Ásia, Oceania e Américas, a colonização de Nárnia pelos Telmarinos desenvolveu-se progressivamente à medida que novas regiões eram exploradas e descobertas. Este processo foi caracterizado por actos de violência contra os habitantes nativos, especialmente após um período de familiarização com o território. Os Telmarinos dominaram e ocuparam as terras de Nárnia, que na época não contava com um monarca para liderar a resistência.

Assim sendo, Nárnia, anteriormente governada por um rei narniano, encontrava-se sob o domínio do príncipe regente Lorde Miraz, mil anos mais tarde. Miraz governava o reino até que o seu sobrinho, Caspian X, alcançasse a maioridade.Todavia, Miraz ambicionava firmemente o trono, levando-o a planear o assassínio do seu sobrinho. Contudo, não logrou concretizar tal intento. Caspian fugiu e, para reforçar a sua posição e minar a reputação de Caspian, Miraz manipulou a opinião pública, questionando a aptidão do sobrinho para governar.

Neste cenário complexo, Caspian foi acolhido por um grupo de narnianos remanescentes, comprometendo-se a restaurar a dignidade e a soberania do reino. Com a ajuda dos narnianos e dos irmãos Pevensie, deu-se início à revolução. Caspian procurou rebelar-se contra o seu tio, enfrentando diversos obstáculos. Miraz aproveitou a situação para usurpar o poder e autoproclamar-se rei.

No decurso dos conflitos, tio e sobrinho confrontaram-se numa guerra civil. No desfecho, Caspian emergiu vitorioso. Ao ser coroado, comprometeu-se a governar para todos, unindo Telmarinos e narnianos sob a sua governança.

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