“A Flor do Buriti” – Cuidar da Terra

"A Flor do Buriti", de João Salaviza e Renée Nader Messora "A Flor do Buriti", de João Salaviza e Renée Nader Messora
"A Flor do Buriti", de João Salaviza e Renée Nader Messora

O cantar: repetição e encanto, ritmo e voz, lonjura e comprometimento. Contra o fundo, pontos crepitantes, luz ténue que aumenta, fogo circular, corpos circulares, enlevo de um trecho que se vai recorrendo a si mesmo, é o cerne da terra, as coisas da terra, urdidas ao céu, cura necessária, rejuvenescimento ritual, a flor é a sua cor, o verde é a folha, o travelling será já o movimento seguinte, uma linha noturna, formas sobrepostas, rizomas fundamentais, o sumo do térreo sobe através dela, a folhagem-nutrição, cores do respiro, de sonhos crescidos do chão. A canção é espírito que se lança, palavra-retorno, cadência mágica, necessidade de apaziguar, forma de comunicação, ligação ao natural, animação do corpo, centralidade de uma comunidade. Forma-mito, sempre reatualizada, canção-tudo, canção-céu, canção-terra.

A dúvida: a seta que se aponta mas que não se atira, que não se fira o outro corpo, o animal é sagrado, a terra é dele, ali veio, poderá dali ir, a noite é longa e sua, que se espere, e ele irá depois. Voltará noutra noite, e em todas as que virão a seguir. Nenhum sangue derramar-se-á, só canto se ouvirá. Respeitar a terra é amar quem nela caminha, é louvar o ato de não fazer mal. Ela sabe, os corpos contados são os de todos, homem e animal, vegetal e atmosfera. A biosfera é corpo maior, feito de todos os mais, é canto como razão, é razão do canto. A ela se canta, abaixo como acima, da terra para o céu, biologias intrincadas, ecologias plenas, constelações bem-vindas, amor pelo que é de todos.

O raiar: aberto, vapores de cores, cheiro de uma alvorada pós-cantada, novo início, nova recolocação, deuses do dia, descansam os da noite. O horizonte é recorte, a erva é planura, a economia é da soma conjunta, não tanto se tira quanto mais se empresta, é uso retornado, valor devolvido, é marcação de um tempo de retirar para um outro de depositar, é o caminho que se faz, tempo não é conta, o zero é o equilíbrio não dito, porque não preciso, o balanço é simples porque tudo o que hoje se deverá, à noite se cantará, no dia seguinte se devolverá.

A água: limpeza de si mesma, fluido de vida, liquidez social, conversa e estadia, momentos de conversa e leveza, o lavar é ato de sociabilização e candura, dentro dela e com ela, ela que segura, limpa e desagua, alimenta quem nela está e quem a ela vem. Ela é rio, enseada, vai forte ou descansa calma, mas está ali, é um outro suco, mas é também vapor e nevoeiro, planura gasosa, líquido que se ascende, parede que protege, fronteira necessária, escondimento dos corpos, para um premente guardar.

Cuidar: dela, a terra de todos, que a todos alimenta, a fronteira do nevoeiro deveria chegar mas não chega, a cancela e a guarita ali estão, a noite é (também) a vigília, não o devia ser, seria sempre e antes, a do cantar, mas não o é. Tomar conta dela não é só dela pegar e a ela devolver, é também demarcá-la – porque outros a demarcam – é ter roupa e cartão de identificação para poder ser um guarda quando sempre já se o foi, é ter uma arma para além daquelas que já se tinha (e sempre se teve), é ter uso da palavra que invectiva o roubar das coisas da terra, dos corpos sociais dessa terra. Tê-la cuidada é nela continuar, é dizê-la como ela é, é deixar sair o animal pelos buracos e deixá-lo caminhar e subir à sua árvore (nela e amanhã também subirão as crianças). Tê-la em cuidado é sentar-se nela, desfiar e estar em comunhão com quem ao lado desfia, é ter a montanha atrás, o céu mais acima, agora azul e sem estrelas, porque mais tarde a elas se poderá cantar.

A política: é o filme que dela, a terra, se faz. Político o filme porque não pode ser de outra forma. Porque tem que lá se ir, à terra outra, dos outros que lá vivem. Fugir do enlevo da ficção, estar na viagem, usar a palavra, juntar e dizer, afirmar o espaço, defender e como tal, cuidar da terra. A viagem é sono, é sonho branco. Mas o estar na linha que caminha é real, é um corpo maior e representativo, diversidade e igualdade em todas as suas vestes, maneiras e cores, são corpos-personagens de uma luta clara, é um filme e uma política, um povo e uma necessidade, fizeram-se atores os que nela vivem, a imensa terra das terras que se querem defender, os intérpretes do filme se fizeram agentes do registo que urge deixar expresso e filmado, ali na capital outra, a de um outro conceito, mas é ali mesmo que se tem de ir para se fazer valer um direito. Assim lhes permitiu o filme, assim se fez enquanto ele-filme, argumento político que é e será.

O espírito: é o que foge, mas também regressa, é a inquietação de uma menina, é a inquietação de um povo, é também um outro vapor, corpo transparente que vem da árvore para a terra, da mulher para o homem, que vagueia e quer ser feito pacífico, pinturas e outros cantos. O espírito é a terra, que urge acalmar, que urge cultivar no cuidado já filmado e afirmado. O espírito é o ar que do chão se levanta, substrato de milhões de tempos, cultura dos corpos que passam e vão, deixados nas canções, nas flores cheiradas, nas flores que estão, nas flores que virão.

Os nomes: dos que estão lá, na terra e por ela, os que cuidam dela, os que a nutrem para que ela os nutra, os seus guardiões, dados a ela, a ela prometidos, a cantar, a ir e vir, a estar para ficar, a ficar para honrar, o poiso dos antepassados, um lugar de feitura, o respiro inicial é aquele para sempre manter, do verde respirar-se-á, das flores se cheirará. Os nomes são os dos Krahô, os que cuidam e os de Renée Nader Massora e João Salaviza, os que filmam.

O lugar: o da Terra, de todos para todos, cantada às estrelas, oferecida à vida, nossa terra, terra nossa.

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